de minha parte, digo que eu sempre te olhei querendo te ver. este tipo de afeto, eu te asseguro, tu sempre o tiveste partindo do dentro de mim. do dentro das retinas e dos nervos de mim. sem auxílio ou referência alguns, eu soube produzir esse afeto em meus engenhos. porque eu nunca fui olhada por homem algum, sequer por ti. não sigo por isso amarga, nem poderia. aprendi que gente certa é gente aberta. falo muitas vezes que ninguém se olha mais./ olho-te. ainda que te danes comigo, olho-te. sei que teus quês são danações. eu preciso te dizer que os teus quês me botam tristíssima. há de existir a gente que dê conta da faca de ferro que é um “que foi, hein?” depois de um bocado assim de carinho. acho que eu nunca soube te explicar dos intentos próprios do gesto, mas isso acaba hoje. pois que hoje eu te digo. eu te digo que, de minha parte, os meus olhos sempre buscaram te ver.
“euzebinha, e quais anseios são teus?”, interroguei-lhe certa vez. “gentes tristes não têm sonhos”, respondeu e o tom empregado em nada era grave./ vencido aquele dois mil e quinze de sofreguidão, construiu à beira-mato uma casinha com tijolos amarelos, dois cômodos, robusta o suficiente para que pulmões inchados de alcateia inteira não a pudessem derribar. é verdade que indefinidos roedores habitavam durante as noites o seu telhado e que ali dançavam macabramente por horas, mas isso não a punha para baixo, sequer a sobressaltava. tudo era vida em seu lugar, e ela respeitava a vida em seu lugar com todos os seus rituais.

ritual: às quintas-feiras de tardinha, fervia água para a feitura do chá de maçã com gengibre, predileção dos companheiros de sempre e imaginários cesco, ezra e selma. mui retos sobre a geladeira — eram pessoinhas em miniatura —, fruíam em muito das contações maviosas de euzebinha. de bertoldo e bertoldinho do croce à estória d'os três pastorinhos./ nos outros dias, enterrada em seu quarto de dormir, compunha sinfonias do absurdo em uma mesma e já surrada caixa de fósforos. “entre os extraterrestres não deve haver um bach”, matutava.
existe uma rear window para cada um dos meus olhos. veja, é infantil a minha curiosidade. não há maldade no teor das minhas ventanas oculares, mas ineditismo irresistível. dos meus olhos respinga antídoto contra o veneno do meu mundo, dos meus outros. quem teria pálpebras assim empapuçadas, senão eu? que as minhas pálpebras abrigam estas duas bolotas que são os meus olhos dilatados, daí serem gorduchinhas. “olhudinha!”, dizia-nos m. n.

eu poderia dizer ao casal que tardiamente chegava e no argentino vazio almoçava que eu vi tudo, e desta maneira mesma eu diria: “eu vi tudo, hein”. e prosseguiria: “cês tão de parabéns, hein. que bonitos que cês tavam”./ dançando purple rain coladinhos./ fiz-me contaminar e muito me bobeei. o meu riso encheu todo o juvevê. nem que eu morresse três vezes, pensei. inalcançáveis dois, veja. espécime de mito. as formigas do arredor do casal que dança dançavam purple rain: tragam oferendas para o casal que dança.
1
eu não me lembro de quase nada do que eu pensei pela manhã, entre dormir um tanto e outro. é sempre um parto dizer. por vezes o choro está ali, entre a faringe e as amígdalas, e simplesmente não sai.

eu fui até a catedral e eu quis chorar. não posso com gente fazendo prece, e jesus tinha cabelo. de uma forma tal, as religiosidades e o deus ainda me arrebatam. acho que eu sempre serei um pouco assim, teísta-sincretista. papo a papa santa dos hare e meto nicotina por cima. sincretismo é isso.

pela manhã, pensava nos derradeiros meninos. por vezes acontece dos meninos entalarem ali, entre a faringe e as amígdalas. é quando nos brotam uns probleminhas.

2
“és... firminha. taí, gostei!”, disse-me um velho seboso. “engana-te, verme!”, deixei de dizer. não lhe deveria minúcias, mas tenho é derme mole, inestruturada. sei que o subterrâneo de minha pele é puro água.
2.1
pois que hoje me adentra inteiriço rio, de aguaceiro infindo. me acabo em soluços e adormeço. meus panos guardam o ph de minhas lágrimas, terceiro segredo. mantra e os sons me ninam, eu rio, eu copacabana-esta-semana./ encharcada desfaleço.
2.2
não impeço passagem de pranto. deixo a goteira salubre riscar caminho por sobre cara, corpo, ponto-coração.
14h40 as abelhas deixaram o templo dos hare. dona kali sempre ajuda. almocei e repeti. saí sem ser vista, mas paguei. da próxima vez, chego um tanto mais cedo./ 15h26 dois paraguayos me oferecem birita. tomo da birita co'a saliva que ficou. tomo da saliva do paraguayo./ 18h30 canto fera ferida na agência bancária. que bonita a minha voz na acústica do bradesco vazio./ 18h35 volto pra casa carregando compras. ando muitas vezes só, vez ou outra ando acompanhada. finjo que já me acostumei. tenho a casca dura e o miolo mole dos caranguejos e choro muito ouvindo roberto, mas não sou canceriana./ 19h05 estou a 200 metros da quiti e falta em iluminação. teias de aranhas são teias naturais. as aranhas pertencem à natureza, assim como nós. algumas gentes são mais natureza que outras.
deitei-me sobre a grama e sorvi-me. havia em mim forte espectro de energia, pois que eu me achava interessada na vida e a vida se achava interessada em mim. esqueci-me de meu branco imenso corpo e devorei sófocles. amei ao mundo e nele inclui-me. as formigas lembraram de meu corpo e tascaram-me mordiscadinhas de amor erótico, bem por detrás das coxas. as formigas lembrarão meu nome, pois que eu as amei e compreendi o erotismo justaposto./ tenho perdido madrugadas inteiras torturando-me e as formigas sabem meu segredo e elas dizem-me forget him. as bolhas de minha derme, quando eu as desfaço, dizem-me forget him. as flores do jardim de nossa casa imaginária, quando eu as recrio, dizem-me forget him. também a minha cara enlouquecida, mesmo agora, quando eu a vejo dentro do fundo deste copo de pesares, distorcida, diz-me forget him.

nada posso, penso. penso que nada posso. quem — ou quê — com esta febre poderá?
não há vida em maria maria 1. dejetos seus misturam-se a dejetos de estranhas meninas. ouça-me, isto não é uma comuna! recuso-me a compactuar com semelhante panfleto! não há liame, não há amor. céus, tampouco há diplomacia! viste a cara da menina, suas reações primárias, aquelas de todo neném? para onde vamos com tamanha brutalidade n'alma? és bruta!, ensejei dizer e cuspiria. enlouquecerei em meses. francesco, o santo de estimação em madeirinha, não mais quer dividir a estreita cama comigo. deu para chamar-me impura, vês. e esquecida. minhas mulheres olham-me, mas não há mais eu. pois eu não canto. minhas cordas vocais mais profundas — não as periféricas, dedicadas à fala e aos gemidos — são agora como densas rochas cobertas por limo. eu não mais sei cantar, pois eu não canto. queimei o meu último incenso hoje, pela manhã. eucaliptus. não haverá mais incenso. o cheiro do incenso desagrada os narizes requintados de nossas meninas. nossas meninas dividem seus dejetos conosco. em maria maria 1 não se queima incenso nem se faz cantoria. também não entra homem aqui. gosto de aspirar o cheiro que vem do incenso e acho que ainda gosto de fazer cantoria. de homem eu gosto um pouco. minto. vês? fugirei daqui.